(No meu tempo de estudante e de Calabouço, escrevi alguns textos pensando publicá-los um dia. “Jurema” era um deles. Hoje, com pequenas modificações, o trago finalmente a público, comemorando as 500 visitas a este blog.)
Jurema apareceu, um dia, com pinta de mendiga vadia. Uma mulher acabada que não demonstrava tristeza no semblante. A primeira reação dos estudantes foi a mais comum: a vaia. Se ela não tivesse dado ouvidos àquela manifestação, não presenciaríamos, posteriormente, os espetáculos que a mesma haveria de protagonizar, em frente ao restaurante Calabouço.
- Mais respeito com as “senhoras”, seus v...!
Aí, a turma se interessou por ela. Mais uma vaia, novo xingamento. Um mais saliente faz um comentário malicioso. Jurema discute com ele e a turma toma partido: Ju-re-ma! Ju-re-ma! Ju-re-ma!
Os contatos iam, aos poucos, se tornando mais coloquiais, com os que já haviam almoçado agrupando-se em torno dela.
- Que é que tu faz, Jurema?
Ela, com olhar de menina assustada, fazia quase que um giro total, em torno de si mesma, encarando os jovens, um a um. A boca era funda. O riso largo denunciava a ausência da maioria dos dentes...
- Eu vou cantar para vocês... O ar se impregnava de cheiro de cachaça quando, desafinada, emitia alguns sons musicais:
- “Foi na Bahia”...
Esse foi o começo. Depois, começaram a ver as pernas de Jurema. A calçinha de Jurema. E a torcida em volta dela, a essa altura já bem concorrida, gritava:
- Strip-tease, Jurema! Strip-tease!
Passageiros de ônibus que se dirigiam ao centro ou à Zona Norte, se viravam curiosos para ver a aglomeração. Garotas mais recatadas que freqüentavam o Calabouço cuidavam em passar longe.
- Strip-tease, Jurema!
- Gente, olhe, que eu ainda não comi hoje!...
- Faz strip-tease que “chove” dinheiro. Mas faz mesmo. Olhe aí, pessoal, a Jurema está sem calcinha (era a armadilha)
- Tô sem calça, tô?...
- Êêêê!... (exclamação geral).
Caiu a primeira moeda no círculo. Caiu a segunda. E muitas outras repicaram na calçada num incentivo àquele espetáculo grotesco, pago com algumas moedas, troco do almoço ou do transporte: uma mulher sem casa, sem comida, sem destino, com uma vida desgraçada, conseguindo alguns trocados de uma juventude estudantil atuante para exibir, como atração, o que restava de si, do seu corpo... O auge do espetáculo era o strip-tease.
- Mas tira “tudo”, Jurema!
- Olhe as moças na fila!... ponderava ela.
- Elas não estão vendo, não. Tira logo a roupa, Jurema!
- Fazia-se tímida. Sentava-se num caixote que arrastava, no qual guardava alguns pertences, como coberta velha que a aqueceria à noite sob uma marquise qualquer, e de repente, ficava calada.
- Assim não vale, Jurema. Tem que fazer strip-tease senão não “chove” mais dinheiro (Mais duas moedas vindas de direções opostas, foram se encontrar no meio daquele picadeiro). Ela meio desengonçada, ela se apressa a recolher.
- Tá bem. Então, faz “paredinha”...
- Vamos juntar todo mundo. Faz “paredinha”, pessoal!
E, dentro de alguns instantes, para maior entusiasmo da turma, o vestido surrado de malha verde-abacate era levantado acima dos seios, deixando à mostra um corpo de mulher desgastado pelo tempo e pela vida desregrada.
Tornou-se popular. Era notada à distância. Às vezes chegava sambando ou imitava miss desfilando em passarela. Aí, suspendia a saia bem acima do joelho, para dizer que estava de mini-saia.
- Jurema!!!
A obra que o governo – a título de urbanização do local, mas, seguramente, com o intuito de desmobilizar a classe estudantil – iniciara, ao lado do restaurante, atingiu, não só a tranqüilidade dos estudantes, que se movimentavam, bolando planos de resistência, com vistas ao pior... A temporada “estudantil” de Jurema também fora atingida em cheio, e entrava em declínio. Isso, porque, com a mudança do tráfego, que fora desviado para a pista de frente do restaurante, acabava o local onde os “shows” eram realizados. Os próprios estudantes estavam agora mais preocupados com o fechamento do restaurante... E, se engajavam na luta!
Houve um dia em que ela resolveu mudar de tática. Quando os estudantes foram chegando à noitinha, para o jantar, encontraram-na de braços levantados, defendendo os direitos ameaçados daqueles jovens.
-...porque eu também sou “mãe e sou brasileira”! E quero que meus filhos tenham colégio pra estudar, e Calabouço pra comer!...
A turma já não lhe dava mais atenção, porque lá dentro havia atrações mais inflamadas saudadas por caloroso batimento de talheres sobre bandejas de aço. Conclamando, de cima de uma mesa estrategicamente colocada num canto do salão, o orador proclamava:
- Companheiros!!!
E, numa noite, em que o pessoal discutia na fila as últimas medidas tomadas pelo governo e a brutalidade da polícia nas manifestações estudantis, Jurema apresentava o seu show mais verdadeiro e pungente, jamais mostrado no Calabouço.
- Eu tô com fome... vocês gostavam quando eu fazia strip-tease, não gostavam?... eu quero comer... se não me derem comida, eu vou deitar aí!... E deitou-se na pista, soluçando convulsivamente, indiferente aos estudantes que nervosos discutiam na fila, buscando saídas para a crise com a polícia que naqueles dias atingia o seu clímax, ou aos motoristas que, admirados com a cena patética, tentavam desviar seus veículos...
Um comentário:
Amigo Gurgel,
E eis que estava aqui me deliciando com seu conto
"Jurema" e fui descendo a página.Deparei-me com um azul celestial em que você homenageia ìcones de nossa poesia e eu!?! em meio a esta constelação!
Obrigada pelo carinho,
Da parceira de viagem literária,
Walnize
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